Espacios. Vol. 36 (Nº 04) Año 2015. Pág. 11
Ana Maria Pires NOVAES 1; Maria Geralda de MIRANDA 2; Kátia Eliane Santos AVELAR 3
Recibido: 14/10/14 • Aprobado: 12/11/14
2. Trabalho E Geração De Renda
3. Contextualizando Os Atores Sociais
4. Letramento E Educação Não Formal
5. Uma Experiência De Letramento Na Comunidade Da Maré
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar práticas de letramento do Projeto LETRAGUIA, desenvolvido pelo Mestrado Profissional Interdisciplinar em Desenvolvimento Local da UNISUAM, em comunidade do Complexo da Maré, Rio de Janeiro, em parceria com a ONG Grupo de Assistência Solidária e Ação Social (Grupo ASAS). Fundamentado na teoria de gêneros discursivos de Bakhtin (2000), nos trabalhos de Soares (1998; 2003) e Rojo (2009; 2010), entre outros, este estudo pretende avaliar textos de diferentes gêneros, produzidos pelos sujeitos participantes, bem como refletir sobre a implementação de projetos de educação não formal em contextos sociais específicos (GOHN, 2009; 2010), que atendam aos anseios e necessidades da comunidade local. |
ABSTRACT: |
As transformações ocasionadas pela revolução tecnológica nas relações sociais, em especial aquelas que dizem respeito ao mundo do trabalho, trouxeram mudanças no processo produtivo: desemprego estrutural, exigência de especialização em qualquer área de atuação, falta de perspectivas de inserção no mercado de trabalho. Diante disso, é preciso entender que a cultura da globalização impôs novas regras e que pensar criticamente essa nova realidade é o desafio que se apresenta aos educadores. Soma-se a isto, a questão do desenvolvimento que exige da sociedade brasileira um projeto social democrático que possibilite a inclusão e a melhoria da qualidade de vida para todos. Este novo século, pautado pelo desenvolvimento, demanda dos sujeitos novos conhecimentos, autonomia e participação no coletivo. Entretanto, isto só será possível por meio de uma educação solidária e inclusiva, que respeite as diferenças e contemple as peculiaridades dos saberes tradicionais, das culturas locais, sistematicamente desvalorizados pelo pensamento hegemônico das elites.
Urge que o estudante/profissional contemporâneo desenvolva competências e habilidades necessárias para o enfrentamento da nova ordem social e produtiva. Um dos caminhos, ao lado da educação formal, é viabilizar projetos de educação não formal, contextualizados, que atendam aos anseios e necessidades das comunidades e permitam a inclusão de parcela significativa da sociedade brasileira, que não teve assegurada pelo Estado, a educação básica na infância e na adolescência.
Nesse contexto, este estudo pretende refletir sobre práticas de letramento em uma experiência de educação não formal, que possa construir espaços de cidadania na comunidade em que se insere e promover o desenvolvimento local. Além disso, objetiva avaliar produção textual em diferentes gêneros discursivos, dos sujeitos participantes do projeto LETRAGUIA: Letramento como Ferramenta para Geração de Renda em Comunidades, desenvolvido pelo Programa de Mestrado Profissional Interdisciplinar em Desenvolvimento Local (PPGDL) da UNISUAM - Centro Universitário Augusto Motta, em comunidade do seu entorno.
Mudanças históricas do processo do trabalho, como a abolição da escravatura no final do século XIX, as conquistas da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), na década de 1930, com a redução da jornada de trabalho, o salário mínimo e a aposentadoria por tempo de serviço, entre outras, bem como os avanços da Constituição de 1988, determinaram, ao início do século XXI, um novo trabalhador. Este não tem mais o trabalho apenas como condição de sobrevivência, e dele se requer maior qualificação profissional. Mediante lutas, o direito ao trabalho e a estabilidade no emprego também se ampliaram.
Enquanto ao longo do século passado, conforme explica Pochmann (2010, p.94-95), as transformações no modo da produção capitalista influenciaram de forma decisiva o papel da educação e da formação profissional na inserção e trajetória ocupacional dos brasileiros, determinando a concentração do sistema educacional nas faixas etárias mais baixas e a antecipação do exercício do trabalho, na sociedade do conhecimento, a transição para a vida laboral "tende a ser cada vez mais decisiva, com a educação e a formação ocupando papel central na trajetória de vida." Ainda, de acordo com esse autor, "o tempo de formação para o ingresso no mercado de trabalho necessita ser ampliado, enquanto a educação e a formação ocupacional transformam-se em algo continuado ao longo da vida útil das classes trabalhadoras (Pochmann, 2010, p.95-96). Como argumenta Frigotto (2010, p.26), "o trabalho não se refere apenas à remuneração de uma tarefa, mas emerge de um direito. A ele, ligam-se uma profissão e o direito à qualificação."
Ao considerar os processos educacionais, escolares ou não, práticas sociais mediadoras e formadoras da sociedade, Frigotto (2010) adverte:
São práticas sociais não neutras. [...] Os processos educacionais têm o mercado e o capital como medida de tudo, em função do privilégio de poucos. Mas a história vem mostrando que eles podem constituir-se em instrumento de crítica em relação a essas relações sociais e, também, promotores de uma nova sociedade que afirme o ser humano como medida de todas as coisas e os bens do mundo como bens de uso de todos os seres humanos. (p.27-28).
Além disso, as novas demandas sociais que regem a relação entre educação e trabalho devem ser objeto de reflexão crítica e de produção de novos conhecimentos nos espaços educacionais, nas universidades e também nos órgãos de decisão dos governos. Como defende Tiriba (2010, p.83), "é preciso descobrir e fortalecer outras tessituras da formação humana, outras redes de sociabilidade, outras maneiras de produzir, distribuir e consumir, tendo como perspectiva uma nova cultura do trabalho, uma nova cultura econômica". Nesse contexto, entram em cena novos atores como as entidades do Terceiro Setor, que desenvolvem uma infinidade de atividades por meio de cooperativas ou associações. Localizadas quase sempre em territórios habitados pelas classes populares, dedicam-se à produção e comercialização de variados produtos para geração de trabalho e renda, lutam pela inclusão socioeconômica dos participantes, mobilizam a comunidade. Como esclarece Gohn (2010 b, p.136), as Organizações Não Governamentais - ONG's "têm suas propostas fundadas na economia solidária, popular, organizam-se em redes solidárias, autogestionadas." Muitas têm matrizes humanistas e buscam construir uma economia alternativa, com base na colaboração, que se contrapõe à economia de mercado capitalista. Não visam lucro, mas a geração de pequena renda, o acesso a espaços e mercados para comercialização de produtos. Várias contam com políticas públicas de apoio ou subsídio às suas produções. Com as ONG's, inauguram-se novos sentidos para os termos trabalho e renda. Em redes de solidariedade, constroem-se parcerias, interações com a sociedade civil organizada, órgãos públicos e empresas para a realização de programas sociais e projetos de inclusão e geração de renda. Nas periferias, favelas ou em cidades distantes, muitas dessas iniciativas têm em seu bojo práticas de educação não formal.
O Complexo da Maré, um dos mais populosos conjuntos de favelas do Município do Rio de Janeiro, localizado entre a Avenida Brasil e a Linha Vermelha, é constituído de favelas planas, intimamente unidas, num total de 17 comunidades. Marca-se por apresentar uma população predominantemente de origem nordestina e/ou negra, com baixo poder aquisitivo, pouco qualificada profissionalmente, quase sempre com baixo nível de escolaridade. Tais dados potencializam a pobreza e, por consequência, muitas vezes, a violência. Em contrapartida, a diversidade de pessoas e grupos lhe configura realidades cotidianas variadas e contribui para a riqueza cultural da comunidade, que precisa ser considerada na construção da identidade de seus moradores. Os migrantes, em especial, trazem de seus locais de origem traços de sua cultura, entre os quais se destaca o cultivo e o uso medicinal de plantas.
Ao discutir a exclusão que a ciência econômica faz dos setores populares como sujeitos econômicos, Tiriba (2010, p.82) critica a divisão social do território e afirma que essa divisão torna as relações sociais nas grandes cidades ainda mais caóticas. Também Gohn (2010b), ao tratar de territórios onde vivem contingentes sociais em situação de pobreza, adverte:
A diversidade cultural só é possível florescer em ambiente de respeito e reconhecimento do pluralismo cultural. É necessária a existência de esferas públicas de interação, diálogos e debates para que a diversidade cultural se firme como um direito, um direito cultural. [...] é preciso criar e ativar espaços para a proliferação de formas culturais alternativas às dominantes. Não apenas porque revela sua existência - fundamental para o desenvolvimento de práticas cidadãs e para a construção de identidades (existentes ou emergentes), como para o reconhecimento público dessas iniciativas, assim como para a construção de redes associativas.
[...] E para que isto ocorra é preciso que este território seja um lugar de promoção da dignidade, da solidariedade. Deve ser um espaço de reconhecimento da cultura de seus habitantes. (p.124-125).
Em 2010, na tentativa de criar um empreendimento solidário que utilizasse a vocação dos atores locais - manutenção de uma horta comunitária e saber popular sobre plantas medicinais - começou a ser desenvolvido, numa parceria entre o Programa de Mestrado Profissional Interdisciplinar em Desenvolvimento Local da UNISUAM - Centro Universitário Augusto Motta e a comunidade, o projeto Cheiro de Vida: Implantação de Unidade para Gestão, Produção e Comercialização de Artesanato baseado em Tecnologias Sociais com Uso de Plantas Medicinais. Tal projeto, articulando conhecimento formal e tecnologias sociais, visa criar oportunidade de trabalho na produção de artesanato com plantas aromáticas para geração de renda de um grupo de mulheres participantes do Grupo ASAS, ONG Grupo de Assistência Solidária e Ação Social. É um projeto piloto para produção e comercialização de uma linha de produtos artesanais de higiene e relaxamento (sabonetes produzidos com óleos essenciais e extratos vegetais, saches, máscaras relaxantes aromáticas, entre outros), que está sendo implementado no Complexo da Maré, mas com a possibilidade de ser desenvolvido em outras comunidades, respeitando-se, claro, as peculiaridades socioculturais e o interesse dos envolvidos (Almeida, 2011; Zepeda, 2012).
Durante sua implementação, percebeu-se que as integrantes, para gerir, de forma mais competente, esse e outros projetos de geração de renda, necessitavam aperfeiçoar a compreensão leitora e a escrita, principalmente de gêneros textuais que circulam no domínio do trabalho e das atividades empreendedoras. Dessa necessidade, nasceu em 2011 o projeto LETRAGUIA: Letramento como Ferramenta para Geração de Renda em Comunidades, objeto de estudo deste artigo, que, em sua formulação, leva em conta os saberes populares dos atores locais.
Inicialmente, em contatos informais com o grupo, foi possível observar que algumas participantes se encontravam, ainda, em um nível rudimentar de alfabetismo, ou seja, eram capazes, apenas, de realizar leitura de textos bem simples, em que localizavam, quase sempre, uma informação explícita. Em relação à escrita, mostravam também dificuldade para registrar, numa situação de venda de artesanato, por exemplo, as encomendas de produtos e, até mesmo, o valor recebido. Outras eram capazes de ler e compreender textos de média extensão, localizar informações, realizar inferências. Mas, independente do nível de alfabetismo em que se encontravam, todas, em maior ou menor intensidade, precisavam vivenciar atividades de letramento, por meio de ferramentas adequadas, que lhes possibilitasse não só a capacitação para a gestão do negócio, mas também para a organização com objetivos comunitários.
Sabe-se que as capacidades de leitura e escrita são múltiplas e diversificadas. Não basta reproduzir as letras nem só decodificá-las. Para o exercício da cidadania, é necessário que os indivíduos realizem a leitura do mundo e tenham, nele, lugar. Desse modo, quando se discutem questões que envolvem o letramento, é preciso também avaliar as interseções dos elementos (econômicos, político-sociais e ideológicos) que caracterizam a dinâmica humana.
Rojo (2010), ao tratar das interações na construção da linguagem e do sujeito social, diz:
[...] investigar o ponto de interseção entre o individual e o social é refletir sobre como as formas de ação e interação social humanas (atividades de linguagem ou discursos) são capazes de multiplicar e reproduzir temas e formas discursivas que refratam e refletem formas possíveis em situações sócio-históricas dadas; em momentos sócio-político-ideológicos determinados. (p.93).
Há sempre um lugar de articulação entre as relações sociais e a atividade da linguagem, uma ligação entre as condições sociais de produção de determinado texto e sua formatação discursiva (Rojo, 2010). Portanto, não se pode desconsiderar na análise que será empreendida neste trabalho, a relação entre as práticas verbais e as ações humanas que se realizam, necessariamente, em um contexto social.
O fato de os indivíduos circularem em diferentes esferas de atividades (familiar, profissional, religiosa, escolar, cultural, entre outras) e em diversas posições sociais, leva-os a mobilizar, em função da especificidade da esfera de comunicação, do modo de produção e recepção do texto, diferentes competências e a elaborar "tipos relativamente estáveis de enunciado", denominados por Bakhtin (2000) gêneros do discurso. Ao se referir às esferas de atividades humanas onde os discursos circulam, Bakhtin (2000, p.279) afirma que os enunciados acabam por refletir as condições específicas e as finalidades diversas de cada uma dessas esferas não só por seu conteúdo temático e estilo verbal, mas também e, sobretudo, por sua construção composicional.
Por meio de atividades, realizadas a partir de textos de variados gêneros, busca-se alcançar a dimensão social do letramento, ou seja, que as participantes sejam capazes de desenvolver, em um contexto social específico, habilidades de compreensão leitora e de escrita necessárias para o desenvolvimento do grupo e da comunidade em que se inserem.
Nas culturas grafocêntricas, onde a escrita é vista como atividade indispensável para a circulação de ideias, o acesso à leitura tornou-se essencial ao indivíduo. À medida que as situações da vida social se tornam mais complexas, há a necessidade de que um maior número de pessoas esteja habilitado para lidar com as várias formas de escrita. Desse modo, fica evidente que não basta aprender a ler e a escrever, é necessário incorporar essas práticas às situações da vida cotidiana.
Soares (1998, p.72), em obra de referência sobre o tema, afirma que "letramento não é pura e simplesmente um conjunto de habilidades individuais; é o conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social". O que se observa, contudo, é que há muitos alfabetizados que leem e escrevem, mas não conseguem fazer a leitura do mundo, não atribuem sentido ao que leem, apenas decodificam as letras. Tal fato, entre outros, sinaliza para o distanciamento entre os conteúdos das disciplinas escolares e a experiência de vida dos alunos.
Rummert (2010), ao refletir sobre essa contradição na educação de jovens e adultos, assinala:
[...] o que a escola oferece quase nunca é efetivamente valorizado porque se distancia do viver, dos inúmeros saberes adquiridos ao longo de existências marcadas por enormes esforços de sobrevivência, numa sociedade que não assume como tarefa fundamental a plena democratização do conhecimento, mas que, ao contrário, o utiliza como instrumento de poder, como arma de discriminação.
[...] Os jovens e adultos trabalhadores trazem para o interior do espaço escolar, uma multiplicidade e uma riqueza de saberes que quase nunca ousam externar por considerá-los inadequados, sem valor ou mesmo equivocados. A escola, por uma série de razões marcadas por um processo de cristalização de valores ideologicamente construídos pelos interesses dominantes, com frequência também se fecha a esses saberes, ignorando-os ou desqualificando-os. (p.121).
Ao tratar das práticas sociais de letramento, Rojo (2009, p.11) comenta que estas vão constituindo os níveis de alfabetismo dos indivíduos e que essa prática não é só escolar. É a capacidade de utilizar a leitura e a escrita face às demandas do contexto em que está inserida e usar essas habilidades para continuar aprendendo e se desenvolvendo ao longo da vida, que caracteriza a pessoa como alfabetizada funcional (Soares, 2003). Por outro lado, é possível não ser escolarizado, mas "participar de práticas de letramento", ser, assim, de certa maneira, letrado. Dessa forma, pode-se falar em letramentos múltiplos, alguns dominantes, como o letramento escolar, o acadêmico, por exemplo; outros marginais e desvalorizados, como as práticas de letramento cotidianas (Rojo, 2009). Ainda, segundo Rojo (2009, p.102), as abordagens mais recentes de letramentos apontam para "a heterogeneidade das práticas sociais de leitura, escrita e uso da língua / linguagem em geral em sociedades letradas e têm insistido no caráter sociocultural e situado das práticas de letramento". Estas, vivenciadas em contextos sociais diversos, também contribuem para o resgate da auto-estima e o empoderamento dos agentes sociais em sua cultura local, na cultura valorizada, na contra-hegemonia global (Souza Santos, 2005).
Neste trabalho, o objetivo não é contrapor o letramento escolar ou dominante às práticas de letramento cotidianas ou àquelas que se desenvolvem nos espaços extramuros da escola. O que se pretende é discutir a possibilidade de se atender às necessidades educativas da vida contemporânea e colaborar para a emancipação e autonomia dos indivíduos, sujeitos do processo de construção de saberes e do próprio conhecimento.
Nesse sentido, a educação abarca espaços fora das instituições escolares. Como afirma Gadotti (2005, p.3), "além da escola, também a empresa, o espaço domiciliar e o espaço social tornaram-se educativos." Em outras palavras, a sociedade civil "está se fortalecendo, não apenas como espaço de trabalho, mas também como espaço de difusão e de reconstrução de conhecimento." Ao relacionar educação formal e educação não formal, diz o mesmo autor:
Toda educação é, de certa forma, educação formal, no sentido de ser intencional, mas o cenário pode ser diferente: o espaço da escola é marcado pela formalidade, pela regularidade, pela sequencialidade. O espaço da cidade (apenas para definir um cenário de educação não formal) é marcado pela descontinuidade, pela eventualidade, pela informalidade. A educação não formal é também uma atividade educacional organizada e sistemática, mas levada a efeito fora do sistema formal. Daí também alguns a chamarem impropriamente de educação informal. (p.2).
Para Trilla (2008), o crescente aumento da demanda por educação em face da incorporação de setores tradicionalmente excluídos dos sistemas educacionais, as transformações do mundo do trabalho, a crescente sensibilidade social para a necessidade de implementar ações educativas em setores da população socioeconomicamente marginalizados, entre outros fatores, têm gerado novas possibilidades pedagógicas não escolares, novos espaços educacionais que buscam satisfazer essas necessidades. Além disso, "a ideia de educação permanente vem legitimando novas instituições, novos meios e recursos educacionais não escolares" (Trilla, 2008, p.25).
Contrariando a tradição de setorializar os três tipos de educação - formal, não formal e informal - numa tripartição, esse autor, argumenta que a educação formal e a educação não formal deveriam ser subclasses de um mesmo tipo de educação, distinguindo-se não exatamente por seu caráter escolar ou não escolar, mas por sua inclusão ou exclusão do sistema educativo regrado. Já a educação informal, por ser um processo, em que as pessoas, durante a vida inteira, "adquirem e acumulam conhecimentos, habilidades, atitudes e modos de discernimento por meio de experiências diárias e de sua relação com o meio", ocuparia outra posição (Trilla, 2008, p.33-35). Assinale-se, ainda, que o aprendizado na educação não formal não é espontâneo, mas construído em determinadas condições, tem intencionalidades e propostas, o que não acontece com a educação informal. Pode-se dizer, então, que a educação formal e a não formal interpenetram-se constantemente, visto que os alunos, além da escola, são participantes das várias esferas da vida social.
Gohn (2010a), ao conceituar educação não formal, distinguindo-a de concepções como educação social, educação continuada, entre outras, esclarece:
É um processo sociopolítico, cultural e pedagógico de formação para a cidadania, entendendo o político como a formação do indivíduo para interagir com o outro em sociedade. Ela designa um conjunto de práticas socioculturais de aprendizagem e produção de saberes, que envolve organizações / instituições, atividades, meios e formas variadas, assim como uma multiplicidade de programas e projetos sociais. (p.33).
As práticas de educação não formal estão no centro das atividades das ONGs e das entidades do Terceiro Setor, nos movimentos e ações de grupos identitários, normalmente pertencentes às camadas populares, que lutam por direitos sociais, políticos, econômicos, entre outros, na economia solidária, no cooperativismo, nos programas sociais para atuação no mercado de trabalho. É o que se observa no trabalho desenvolvido pelas artesãs do Grupo ASAS, que, com fomento da FAPERJ (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) e apoio da PETROBRAS para geração de renda, comercializam artesanato produzido com plantas medicinais (aromáticas) da horta comunitária.
Importa destacar, ainda, que a educação não formal deve ser definida como um espaço concreto de formação com a aprendizagem de saberes para a cidadania. Tal formação envolve aprendizagens não só de ordem subjetiva - relativa ao plano emocional e cognitivo das pessoas, como também a aprendizagem de habilidades corporais, técnicas, manuais, entre outras, que as capacitem para uma atividade de criação, da qual resulte um produto como fruto do trabalho realizado (Gohn, 2009, p.32-33). Nesse processo de aprendizado, os indivíduos, inseridos num contexto social específico, passam a ter consciência de seus direitos, percebem diferenças, convivem com a diversidade e buscam em conjunto resolver problemas com os quais se defrontam. Em relação ao trabalho, passam a ter condições de discutir sua organização, os fatores de produção, os custos e a implementação de novas propostas. Podem, ainda, construir uma linguagem comum que lhes possibilite ler o mundo, participar do grupo, interagir com seus pares.
Nas atividades iniciais com o grupo, buscou-se, por meio de conversas informais e discussões suscitadas nas primeiras rodas de leitura, traçar uma panorâmica da história de leitura e dos níveis de letramento dos participantes de modo a avaliar as necessidades e expectativas dos atores. Como ensina Gohn (2010 a), na educação não formal, a metodologia parte da problematização da vida cotidiana, uma vez que os conteúdos emergem de temas que se colocam como necessidades, carências, desafios, obstáculos ou ações empreendedoras a serem realizadas.
O texto de abertura foi um fragmento da obra A águia e a galinha, de Leonardo Boff, mas precisamente a história, que metaforiza a condição da existência humana; a dimensão do cotidiano limitado, simbolizado pela galinha, e a possibilidade da abertura ao ilimitado, de superação dos obstáculos, representada pela águia. O objetivo era despertar no grupo a auto-estima, o compromisso com o empreendimento, a vontade de buscar novos horizontes e a consciência de que o letramento colaboraria para isso. Após a leitura, da qual nem todas participaram a princípio, por inibição, bloqueios, medo de errar, o tema foi debatido e algumas elaboraram a primeira produção escrita, como as que seguem:
Às vezes a vida não é fácil, mas a gente tem que enfrentar e buscar os nossos sonhos. A gente não deve ter medo de enfrentar os obstáculos e as dificuldades que nós enfrentamos no dia a dia, assim como a águia enfrentou o medo de voar. (TEXTO I)
Bom, podemos aprender nesse texto que pra tudo na vida temos que tomar coragem. Assim com a águia nós temos o nosso dever para realizar aqui na terra.
Temos sempre que acreditar que podemos fazer algo melhor na nossa vida.
Voar alto como a águia. Para alcançar os nossos sonhos e ter a nossa Vitória em nossas mãos. (TEXTO II)
No encontro seguinte, buscando motivá-las para o exercício de outros papéis na sociedade (o grupo é constituído de donas de casa, algumas com mais de 50 anos) foram trabalhados dois textos: Mulheres de Atenas, de Chico Buarque de Holanda, e Mais macho que muito homem, de Heloneida Studart, momento em que foram debatidos os temas submissão e direitos da mulher.
A partir desse contato inicial e da percepção das peculiaridades do grupo, foram selecionados temas e escolhidos os gêneros textuais que se transformariam em objeto de ensino-aprendizagem. Para as atividades foram escolhidos gêneros típicos do empreendimento, como, carta comercial, carta de solicitação e de reclamação, e-mail, requerimento, folder, ata, entre outros, exigidos para as tarefas de gestão, como também os que circulam em outras esferas de atividades (familiar, doméstica, da cultura, do lazer) de modo a contemplar o cotidiano dos atores sociais. A seguir, as atividades desenvolveram-se em etapas, priorizando-se a leitura e discussão de textos do gênero escolhido, bem como a percepção de suas particularidades, seu contexto de produção e circulação, as esferas sociais em que o gênero transita. Na produção escrita, algumas vezes em colaboração, partiu-se dos pontos levantados na análise coletiva. As potencialidades dos atores e as necessidades de aprendizado do grupo orientaram o curso das atividades e o conteúdo a ser trabalhado.
O primeiro gênero textual trabalhado foi carta. Embora esse gênero se materialize em categorias distintas de textos, com diferentes propósitos comunicativos, e circule em diversas esferas de atividade, as cartas têm em comum uma estrutura básica: a seção de contato, o núcleo ou corpo da carta, onde se define seu tipo, e a seção de despedida. Assim, pode-se falar em carta pessoal, carta do leitor, carta comercial, carta resposta, carta de reclamação, que atendem a diferentes funções. As cartas pessoais, por estarem mais próximas das experiências cotidianas, foi o primeiro tipo trabalhado. A temática sugerida foi o dia-a-dia dos enunciadores, o destinatário escolhido uma das educadoras do projeto. Viu-se nessa proposta mais uma oportunidade para que o conhecimento sobre os participantes se ampliasse.
Transcrevem-se exemplos:
Rio de Janeiro, 7 de junho de 2011.
Querida Geralda, venho por meio desta carta, lhe dizer como é o meu dia a dia. Acordo cedo, logo pela manhã tomo meus remédios da pressão, pois sou hipertensa, tem remédio que tomo em jejum. [...] depois vou segunda, quarta e sexta para a academia de 9 às 10 da manhã. Quando chego vou fazer o almoço para eu e minha neta almoçar e coloco ela para o colégio. Na terça e na quinta feira tenho pela manhã compromisso na igreja, e a tarde vou para o projeto Cheiro de Vida e Letraguia.
E durante o resto do dia cuido dos meus afazeres [...] A tarde cuido do jantar esperando pela chegada do meu esposo pois ele sai 5 horas da manhã e chega só a noite. E também tem noite que vou a igreja.
Querida, esse é o meu dia a dia.
Um abraço de sua amiga
(TEXTO III)
Rio de Janeiro, 7 de junho de 2011.
Querida,
Eu quero falar sobre a minha vida eu acordo as seis horas da manhã. Faço almoço e depois vou para horta plantar as ervas medicinais, faço capina, planto e ao meio dia paro para o almoço, descanso uma hora e a tarde faço a mesma coisa.
Vou terminar
Com muito carinho e um abraço da sua aluna
(TEXTO IV)
Os textos produzidos foram o ponto de partida para a discussão das marcas textuais e linguísticas do gênero "carta": conteúdo, composição/estrutura, formas de cortesia, o grau de intimidade entre os interlocutores. Embora os textos analisados apresentem marcas que revelam o nível de alfabetismo dos enunciadores, é necessário salientar que esse tipo de carta tem um caráter coloquial em estilo e temática por caracterizar-se como forma de comunicação eminentemente pessoal e espontânea, espécie de uma conversa escrita entre emissor e destinatário. Em geral, esse subgênero pode ser classificado como carta de narração e/ou reflexão, carta de conselho, carta de pedido e carta de contato, tendo em vista o propósito comunicativo do emissor (Novaes, 2006). No caso da proposta apresentada, o tipo produzido não poderia deixar de ser narrativo, uma vez que o texto deveria apresentar uma sequência de ações realizadas pelo sujeito-autor no seu cotidiano.
Nas aulas seguintes, outros subgêneros foram apresentados ao grupo: cartas de leitores, que determinou uma pesquisa nas seções de jornais e revistas em que esse tipo é encontrado, cartas de solicitação e de reclamação. Dos diferentes tipos analisados, a carta comercial exigiu maior empenho das participantes e uma análise mais acurada, visto a necessidade de domínio desse gênero (ou subgênero) para gestão e comercialização do artesanato que produzem. Chamou-se atenção para as expressões mais comuns presentes nas diferentes partes da carta (na invocação, no corpo da carta, no fecho), as formas de gentileza e as qualidades que o texto deve apresentar entre as quais foram destacadas boa apresentação, clareza, correção, objetividade, concisão e impessoalidade. Com o objetivo de que a aprendizagem ocorresse em uma situação concreta de interlocução, foi elaborada em colaboração uma carta a ser encaminhada à reitoria da UNISUAM para divulgação do artesanato produzido pelo grupo no Projeto Cheiro de Vida e uma lista de itens com o preço de cada um deles. A educadora que conduziu a atividade chamou atenção para a forma de tratamento a ser utilizada, para a objetividade e impessoalidade do texto. Foi trabalhado na ocasião o vocabulário, buscando-se em conjunto os termos mais adequados. O texto passou por processo de reescritura várias vezes, atendendo-se às escolhas dos emissores. Após a elaboração do texto definitivo, fotos dos produtos foram anexadas à carta que foi entregue à reitoria da IES pela diretora da OGN Grupo ASAS.
Transcreve-se a carta:
Rio de Janeiro, 23 de agosto de 2011.
Ao Magnífico Reitor do Centro Universitário Augusto Motta
Assunto: Proposta de venda de produtos artesanais do "Projeto Cheiro de Vida" – ONG Grupo ASAS
O "Projeto Cheiro de Vida" é desenvolvido por um grupo de artesãs da Comunidade da Maré a partir de uma iniciativa do Grupo ASAS com apoio do Curso de Mestrado em Desenvolvimento Local da UNISUAM, da FAPERJ e PETROBRAS. Tem como finalidade a produção de artesanato com a utilização de plantas medicinais e aromáticas, entre outros itens.
A presente carta tem como objetivo apresentar nossa lista de produtos, para que possa ser avaliada a possibilidade de aquisição dos artigos oferecidos como ação de responsabilidade social, tão característica dessa instituição.
Contando com a sua colaboração, antecipadamente agradecemos.
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Grupo ASAS (TEXTO V)
Em atendimento à necessidade de que gêneros de outras esferas de atividade e outros domínios discursivos (doméstico, da cultura, do saber popular, do lazer) fossem contemplados, escolheram-se gêneros como, por exemplo, receita culinária, provérbio, fábula e conto. A receita culinária, gênero que faz parte do cotidiano das donas de casa, deu origem a um caderno de receitas, item que engrossará a lista de produtos comercializados pelo grupo. A partir de textos selecionados pelas participantes, o gênero foi analisado a partir do conteúdo temático que se divide em duas partes: lista de ingredientes e modo de fazer. Chamou-se atenção para a presença de uma série de ações que expressam o desejo de levar o destinatário a agir, pressupondo que este está apto a realizá-las (o como fazer). Numa das aulas, a participante "Tia Maria", espécie de líder do grupo, detentora do saber popular sobre plantas medicinais e que trabalha na horta comunitária, preparou um bolo com rama de cenoura que foi servido após o encontro acompanhando o chá habitual.
Da receita passou-se aos provérbios, que fazem parte do conhecimento de mundo dos indivíduos e se caracterizam como discurso sempre citado. Avaliou-se o tom de conselho, de alerta que esse gênero apresenta, a relação que tem com a natureza humana e sua constituição como sentença que encerra uma verdade inconteste da sabedoria anônima. A atividade decorreu com apresentação dos provérbios recolhidos por cada uma, seguida da interpretação realizada coletivamente. Dos provérbios selecionados, apresentam-se, a título de exemplo, os seguintes: Amigo é igual ao sol, só aparece quando o tempo está bom. / Olho grande não entra na China. / Dê com a mão direita, mas que a esquerda não veja. / Boa romaria faz, quem na sua casa vive em paz. Em relação às marcas formais, foram destacadas a frase breve e a frequente rima, elementos que favorecem a sua memorização.
Dos gêneros da ordem do narrar foram escolhidas fábulas, o conto Um apólogo, de Machado de Assis e da ordem do relatar, relatos de experiência vivida (histórias de vida). A escolha do gênero fábula atendeu ao objetivo de trazer à discussão histórias que, mesmo escritas, são representativas da tradição oral e do modo de vida dos grupos sociais ao longo dos séculos. Um dos gêneros mais antigos possibilita, por meio de animais e seres mágicos, a crítica aos desmandos da elite, o registro das qualidades e defeitos dos seres humanos e do estilo de vida dos povos. As atividades com fábulas permitiram a leitura do mundo, o estabelecimento de relações com a realidade social vivenciada, com os problemas da comunidade, com questões políticas e éticas. Ao se discutir a forma composicional das fábulas, as participantes perceberam não só os elementos da estrutura narrativa como também o ensinamento de ordem moral que encerra os textos desse gênero. Quanto ao conto Um apólogo, ele foi selecionado por sua proximidade com a fábula e pelo interesse revelado por parte do grupo acerca do escritor Machado de Assis.
Numa das aulas, quando se discutiam as condições de vida na comunidade, as dificuldades enfrentadas, em especial pelos jovens, pela falta de oportunidade, uma das educadoras comentou que havia, ao longo da história, exemplos de superação. Dessa forma, o nome do escritor Machado de Assis veio à baila, por ter ele nascido no Morro do Livramento e lá, próximo à zona portuária do Rio de Janeiro e ao Morro da Providência, ter vivido como menino pobre para, posteriormente, tornar-se grande escritor da língua portuguesa. Segundo Gohn (2009, p.33), "a escolha dos temas geradores dos trabalhos com uma comunidade não pode ser aleatória ou pré-selecionada, imposta do exterior para o grupo." Devem emergir de temáticas que tenham alguma ligação com a vida cotidiana, com a cultura local, seu modo de vida, com práticas coletivas, entre outros aspectos. Deve-se partir dos valores da cultura local, "mas também se deve passar conhecimento porque todos os seres humanos têm direito ao acesso a informações e ao conhecimento historicamente acumulado. Certamente isso nos leva a novos saberes, há trocas, o processo é interativo" (Gohn, 2010 a, p. 53).
Após a leitura do conto e definição do gênero apólogo, bem como a observação de suas características temáticas e estruturais, foi feita uma atividade de vocabulário para que se explorasse o emprego de determinadas palavras e expressões de fraca presença no linguajar usual (coser, ínfimo, por exemplo). Além disso, foram destacadas formas linguísticas que caracterizam hábitos, costumes, usos da época, como, por exemplo, modista e corpinho (peça do vestuário). Para finalizar essa etapa do trabalho com os gêneros do narrar, foi realizada atividade em que as participantes, a partir da escolha de uma fábula ou do conto, produziram um texto de natureza avaliativa. Algumas optaram por apresentar um comentário mais amplo, abarcando as leituras dos textos desse grupamento, como se vê no exemplo que segue:
Bom, a professora pediu que eu falasse sobre a parte das fábulas, A corte e o leão, A cabra e o asno, O cisne e o cozinheiro e Um apólogo.
Bom, a parte que eu mais gostei da Corte e o leão foi a da raposa. Ela que fez bem de ficar calada, usou de esperteza, muitas das vezes é melhor ficar calada, do que abrir a boca e se dar mal que nem o urso e o macaco.
E sobre A cabra e o asno, é como diz o ditado popular o feitiço acaba virando sobre o feiticeiro. E quem maquina contra os outros termina fazendo mal a si próprio.
Agora sobre o Cisne e o cozinheiro: a sorte foi do cisne que com o lamento bem manso e suave, não foi para a panela do cozinheiro.
E para finalizar, vamos falar de Um apólogo.
Sobre a fábula de um apólogo eu tirei a última parte que diz assim:
Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam fico. Eu achei engraçado a palavra do professor, que abanando a cabeça disse:
-Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!
Essas são as minhas palavras. (TEXTO VI)
O que se observa, no exemplo transcrito, é que o ato de ler, enquanto atribuição de sentido, compreensão, foi realizado pelo sujeito e se revela nos recortes de partes significativas de cada um dos textos trabalhados. Outro aspecto que ressalta é o discurso citado, presente tanto no terceiro parágrafo, na transcrição da moral da fábula ("quem maquina contra os outros termina fazendo mal a si próprio"), quanto no fragmento selecionado de Um apólogo. Quanto à escrita, a produtora, embora não faça uso de articuladores textuais mais precisos, consegue, por meio do conector E, do advérbio AGORA, manter a progressão textual. Garante também a continuidade temática a partir da colocação, no primeiro parágrafo, do tópico que será comentado.
As atividades em torno dos relatos de experiência de vida desenvolveram-se a partir de temas como família, comunidade, moradia, saúde, educação, preservação do meio ambiente, entre outros. Os relatos foram surgindo à medida que os temas eram discutidos oralmente e foram desenhando a realidade vivida pelas participantes, a rotina e problemas da comunidade. O cenário presente que se precisa conhecer para que possam ser estimulados cenários futuros no processo de conquista da emancipação e da cidadania.
Transcrevem- se alguns relatos:
Eu moro há vinte anos na Baixa do Sapateiro com meu esposo e filhos. Quem colocou o nome da rua que eu moro foi meu cunhado que colocou o seu próprio nome na rua. Essa rua se chama Ivanildo Alves, ela fica na divisa com a Nova Holanda, e tem muito movimento. (TEXTO VII)
Eu estou muito feliz por estar estudando hoje aos 36 anos para realiza um grande sonho de ser uma costureira. (TEXTO VIII)
Eu era uma pessoa deprimida, triste foi quando fui na Igreja Batista. Quando cheguei lá senti paz, alegria e hoje sou feliz, alegre, sou uma nova pessoa. (TEXTO IX)
Aqui na Maré o lixeiro passa, de segunda a sábado, mesmo assim nós vemos lixos amontoados entupindo esgotos, quando chove nós vemos os esgotos entornando. (TEXTO X)
[...] ás 10horas fui a Bonsucesso receber o dinheiro de meu pai (Dil) e aproveitei e fui procurar uns materiais de artesanato, que ando com umas ideias para fazer [...]
Cheguei no ponto das kombis e quem passou e me deu tchau Jussara e os gêmeos dela, peguei a kombi e ao chegar em casa o meu reloginho (Dil) já tina subido para almoçar [...] dei o almoço e fui para o curso de Letramento com a Aninha. Eu chego atrasada mais chego. [...] (TEXTO XI)
Os breves relatos, quase todos pessoais, permitiram estabelecer o diálogo com as participantes e captar a realidade vivenciada por elas para, a partir desse conhecimento, considerar o que é necessário e apropriado a cada uma, e ao grupo como um todo, para melhorar as condições de vida e trabalho e impulsionar a busca por mudanças.
Neste trabalho, buscou-se apresentar resultados de uma experiência de práticas de letramento, desenvolvida no ano de 2011, com um grupo de artesãs da Comunidade da Maré, Rio de Janeiro, que participam de projeto LETRAGUIA: Letramento como Ferramenta para Geração de Renda em Comunidades, fruto da parceria entre o Programa de Mestrado Profissional Interdisciplinar em Desenvolvimento Local do Centro Universitário Augusto Motta (UNISUAM) e o Grupo ASAS, ONG Grupo de Assistência Solidária e Ação Social.
A partir de uma reflexão sobre as mudanças das relações estabelecidas entre trabalho e educação neste início do século XXI, contextualizou-se o espaço sociocultural dos sujeitos envolvidos e a possibilidade de, por meio de projetos de inserção social e geração de renda, melhorar as condições de vida dos atores e promover o desenvolvimento local.
Foram analisadas atividades de letramento, centradas no trabalho com gêneros discursivos, tanto dos que circulam no domínio do trabalho, como no das experiências cotidianas. O estudo realizado comprovou a validade da iniciativa, visto que já podem ser percebidos avanços no interesse das participantes pelo universo da leitura, na compreensão leitora e na escrita. Deve, ainda, ser salientada a necessidade de incentivo à realização de mais pesquisas científicas na área da educação não formal, para que os resultados dos projetos não se restrinjam às empresas de fomento e ao poder público, e os educadores possam refletir sobre práticas educativas fora do espaço escolar.
Espera-se que, com a continuidade do projeto, a dimensão social do letramento seja alcançada para, num futuro breve, os sujeitos, com autonomia, gerirem o empreendimento, bem como outros projetos sociais, e buscarem soluções para os problemas da comunidade.
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1 Doutora em Letras, Professora da Universidade Estácio de Sá.
2 Pós-Doutora em Letras, Coordenadora e Professora do Programa de Pós-Graduação Profissional Interdisciplinar em Desenvolvimento Local.
3 Doutora em Ciências, Professora do Programa de Pós-Graduação Profissional Interdisciplinar em Desenvolvimento Local. Centro Universitário Augusto Motta. *Autor para correspondência: E-mail: katia.avelar@gmail.com